4 de nov. de 2010

BEATICES

Quando tinha lá meus oito ou nove anos Dona Lucila Velo, nossa vizinha e guardiã das virtudes cristãs da cambada de guris e gurias mais ou menos da mesma idade, que desfrutavam da sua casa como se fosse um clubinho, houve por bem iniciar-nos na prática da Fé Católica Apostólica Romana e para tanto incentivou as meninas a se tornarem Filhas de Maria e aos meninos encaminhou-os todos à igreja matriz, onde pontificava o Padre Liberal, para que, a serviço da Santa Madre Igreja, nos tornássemos coroinhas. Alguns dos meninos, sendo já alunos do colégio dos padres e tendo feito a primeira comunhão, tinham algum conhecimento dos rituais das missas e novenas, mas eu e mais outros éramos leigos no assunto e para o exercício de função de tanta responsabilidade tivemos de fazer, por assim dizer, um curso rápido dos procedimentos da função de coroinha. Coisa difícil e ainda mais complicada por ser a missa naquela época ainda celebrada em latim, língua que só iríamos começar a estudar no curso ginasial. O jeito era a “decoreba” recitada maquinalmente às orações do padre oficiante.
Para quase todo o bando de coroinhas cooptado pela beata senhora aquilo era tão somente motivo para nos reunirmos na catedral e depois irmos flanar na Praça da Rendição, hoje Rio Branco. A atividade tinha lá seus atrativos, entre eles o de “filar” o resto do vinho de missa que sobrava nas garrafas na sacristia; surrupiar pedaços de cera das velas para fazer pelotas que iriam encerar os barbantes das pandorgas; dar uma “baixa” nas moedinhas deixadas pelos fiéis na sacola dos óbolos, que mais tarde serviam para financiar a compra de balas no Lanzziani onde, aliás, nunca nos perguntaram de onde conseguíamos tantos trocadinhos. A proprietária foi, por assim dizer, a primeira receptadora com quem travei conhecimento.
O padre Liberal travava uma luta constante contra as pombas que tinham seus ninhos nas paredes das obras da catedral, uma verdadeira “obra de igreja”, uma daquelas construções que não terminam nunca. Nos seus combates brandia sua arma, uma espingarda de ar comprimido com a qual atirava dos fundos da casa paroquial e, diga-se de passagem, com grande eficiência abatendo as indesejadas moradoras que emporcalhavam tudo, inclusive a nave da igreja. Ocorre que, numa das primeiras lições que tive nas aulas de catecismo, ministradas por Dona Alice Fabrício - outra incansável propagadora das virtudes cristãs - me foi ensinado ser Deus uma trindade: Pai, Filho e Espírito Santo, sendo o Espírito Santo uma pomba branca. Esse dogma provocou em minha inocente alma infantil uma dúvida que, se já naquela época fossem moda terapias psicológicas, teria fatalmente acabado num sofá de analista: - Não havia risco de naquelas caçadas o padre Liberal abatesse o Espírito Santo, afinal não eram poucas as pombinhas brancas morta por aquele homem de Deus.
Essa e outras tantas duvidas fizeram que, mesmo sendo coroinha até os dez anos de idade, só fosse fazer minha primeira comunhão em 1947, individualmente, já burro velho com treze anos, durante o Congresso Eucarístico Diocesano, em Uruguaiana. E já como aluno do ginásio do Colégio União, metodista.
Guardei lembrança da confusão que armamos, nós os coroinhas, numa missa solene rezada por Dom José Newton de Almeida Baptista, bispo que tomara posse na Diocese de Uruguaiana no dia 07 de outubro de 1944. Durante o cerimonial havia um momento em que um de nós deveria ajoelhar-se diante do trono ocupado pelo Bispo e, por sobre a cabeça colocar um missal para que ele orasse. Coube a mim a responsabilidade de tal incumbência.
E lá estava eu de joelhos, com o tal livrão por sobre a cabeça quando senti pingar no meu cangote pingos de cera quente. A cada pingo eu estremecia e balançava o missal, Tanto que o santo homem, sussurrou: - Fica quieto, menino! E mais tarde levei uma bronca do monsenhor encarregado do cerimonial. Injusta. Um dos coroinhas, com que eu tinha diferenças, portava uma enorme vela acessa para iluminar o missal e, criminosamente, se fez de distraído e pingou cera quente no meu pescoço.
O nome do marginal prefiro manter em segredo mas ele, se ainda não houver partido para o andar de cima, deve estar bem lembrando do seu ato covarde.

2 comentários:

  1. FIQUEI EMOCONADA E DEI RISADAS LMEBRANDO DA TIA LUCILA,PESSOA MARAVILHOSAAAAAAAAAA
    DAS PESSOAS MAIS QUERIDAS QUE VI NA VIDA!!TEMOS QUE RESGATAR NOSSAS LEMBRANÇAS!!!
    TB FIZ CATEQUESE COM ELAS!!
    D.NEWTOM ERA UM ARISTOCRATA,CULTO,NADA HAVER COM OQ EXISTE HOJE...
    ERA UM MUNDO DIFERENTE,MESMO,PUXA VIDA!!!
    NÃO TENHO PALAVRAS PARA TE AGRADECER ESTE RESGATE MARAVILHOSO.VOU INDICAR PARA MARISA E ZECA.QUERO MAISS!!!!!
    POR FAVOR!!

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  2. VOU LER VÁRIAS VEZES
    ABRAÇOS

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