24 de ago. de 2011

O CAMBÃO


            Corria o ano de 1958 e toda a guarnição de Uruguaiana se encontrava de prontidão que, para os não versados em assuntos militares, significa a tropa toda aquartelada, sem poder ir para casa, pronta para entrar em ação a qualquer momento. Com a instrução transcorrendo normalmente também é necessário, para diminuir a tensão, criar opções de lazer e então, tome de práticas esportivas, futebol, vôlei, basquete, pólo, lutas, hipismo, enfim tudo que distraia a soldadesca, cabos, sargentos e a oficialidade. E naquele tempo não era diferente.
            Mas depois de alguns dias começaram, principalmente entre a tenentada algumas práticas não mui ortodoxas nem salutares, como o carteado, as apostas em tudo aquilo fosse oportunidade de uma disputa, e o consumo exagerado dos cigarros (cigarros, cigarros mesmo, não bagulho que ainda não entrara na moda). Jogatina e fumo sempre pedem complemento: uma “daquela que matou o guarda” e disso a cantina do quartel não dispunha.
            Na verdade aquele confinamento lá no fim da Duque de Caxias era como se estivéssemos numa prisão. Telefones no quartel eram muito poucos, que eu lembre, acho que só havia na sala do Comandante, no comando dos esquadrões e no Corpo da Guarda, e assim mesmo daquele modelo antigo, acionado a manivela. O celular somente apareceria muitos anos depois... O contato com o mundo exterior era muito precário e o jeito era fazer uso dos bons serviços das lavadeiras para mandar e receber recados, principalmente das namoradas. Com o radinho de pilha ainda não popularizado a maneira de se saber da novidades era através do noticiário que chegava nas ondas da ZYZ6 – Radio Charrua de Uruguaiana – recebido em prosaicos receptores ainda a válvulas. Sendo assim, sem noticias, as fofocas corriam as soltas difundidas pelos quartéis do 8º RC e do vizinho Grupo de Artilharia. Como os oficiais mandavam seus ordenanças buscarem suas roupas em suas casas eles serviam também de pombo-correio.
            E foi a um deles que o Ten Molina (ele mesmo, o irmão do Oneo) recorreu para sanar uma sentida lacuna na nossa mesa de pôquer no cassino dos oficiais: A total falta de combustível para o papo da noite, a danada da cachaça. O escalado para tal missão de confiança foi o soldado Silva, mais conhecido como Cambão. Um negrão muito forte, despachado, com cara de poucos amigos, mas muito boa praça.
            No domingo, logo depois do almoço, lá se foi o índio velho, bem montado, levando um alforje para que viesse bem acomodada a desejada encomenda: Uma garrafa de Marumby Ouro (o néctar das canhas naquele tempo).
            A tarde foi caindo, nada do Cambão voltar e a ansiedade aumentando entre os associados àquela empreitada. Por onde andaria nosso homem de confiança? Ao anoitecer nos veio a noticia trazida lá do corpo da guarda: O Silva estava preso no xadrez, trazido por uma patrulha dos Fuzileiros, por ter se envolvido numa briga com um grupo de paisanos lá pras bandas do cemitério. Diante de tal noticia o Ten. Molina correu a se informar com o Oficial de Dia do motivo da prisão do Silva. O praça tinha brigado com alguns civis e quebrado a cabeça de um deles com uma garrafada. O ferido tinha sido levado para o hospital militar, já fora medicado e ficara em observação. O talho tinha sido feio, até pontos precisaram dar, o paisano não corria risco de vida, mas preocupante era o estado do Silva que não parava de chorar. Solidário o Molina foi até xadrez dar apoio ao seu subalterno.
            Realmente o estado do Silva era de fazer dó e o Molina tentou acalmá-lo.
            - Para com isso, índio velho, e me conta o que aconteceu.
            Entre soluços o praça contou que já estava voltando para o quartel quando ao passar numa vila um bando de paisanos começou a xingar, assustando sua montada até que um deles tentou tira-lo da sela. Foi quando, num gesto pegou a garrafa de cachaça e partiu na cabeça do atacante que caiu banhado em sangue. E ai... (nesse ponto o Silva voltou a chorar copiosamente.)
            O Molina ficou com pena do subalterno, consolando:
            - Não chora meu filho... Não vai te acontecer nada. O paisano está bem e não vai morrer...
            O Silva olhou-o sério, fungando:
            - Tenente, eu não estou chorando por causa daquele filho-da-puta. Estou chorando pelo precioso liquido que se perdeu.

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