14 de abr. de 2011

TERRORISTAS


Aquele Janeiro de 1947, como todos os Janeiros em Uruguaiana, era quase que um vestibular para o inferno. O calor era tanto que o gaiato do Gordo Eloi já tinha até feito sua usual demonstração de alta culinária fritando um ovo no asfalto diante da Confeitaria Campana. Atravessar a rua naqueles dias era dar motivo muitas broncas na chegada em casa, o piche grudava nos sapatos e emporcalhava os assoalhos das casas. A gurizada mais assanhada, aqueles que andavam descalços e até conseguiam jogar futebol nos campinhos cheios de guanxumas, encarava valentemente a travessia daquela massa fervente ao preço, é verdade de placas de piche na sola dos pés, que só eram limpas com querosene ou raspadas com um caco de telha. Mesmo a este custo, atravessar a rua correndo sempre foi disputa muito comum entre a piazada. Confesso que esses desafios não me atraiam muito, mas nem assim ficava livre de emporcalhar os pés. É que o lugar onde costumava me banhar no rio Uruguai, perto da Ponte Internacional, era onde ficavam ancoradas a últimas lanchas que ainda faziam viagens até Libres e dentro d’água, e na margem, sempre boiavam traiçoeiras manchas de óleo. E tome de calções sujos e manchados... E tome de broncas em casa.
O sol, naquele tempo ainda não haviam inventado o tal horário de verão, só se punha lá pras bandas do Cacaréu por volta das nove da noite quando o movimento no centro da cidade dava uma trégua e todos iam jantar em suas casas.
Por volta das dez horas a quadra da Bento Martins entre a Duque e a Domingos de Almeida se tornava palco do animado “footing” de rapazes e moças. Eles ficavam concentrados diante do Campana e do Café Velo enquanto as gurias, em pequenos grupos, de braços dados, passeavam pelo meio da rua. Naquele então as ruas da cidade eram quase todas de mão dupla e ali o transito era interrompido em um delas.O footing continuava pela calçada da Praça Rio Branco até a esquina fronteira ao Comercial. Aí já não se andava pela rua  porque nela os filhos dos felizes proprietários de autos estacionavam os veículos se exibindo para as beldades que passeadeiras.
Mas isso era coisa de gente mais velha (mais de quinze anos de idade), a nos pré-adolescentes restava fazer bagunça fora dos olhares atentos de nossas famílias. E a gente ia lá para o centro de praça, procurando namorados nos locais mais escurinhos para lhes infernizar o romance. Valia tudo, desde gritos, sustos e até uma lanterna um dos bagaceiras conseguiu. Éramos verdadeiros terroristas sociais. E como bons terroristas atacávamos e desaparecíamos como por encanto.
Com o calor fizera durante o dia todas as baratas dos bueiros da cidade haviam resolvido sair todas para a rua e, como desde que o mundo é mundo, as moçoilas estavam em pânico diante da perspectiva de encontrar em seu caminho uma daquelas cascudas. Foi esse atavismo que nos levou a um plano maquiavélico.
Com umas caixas de sapatos que encontrei em casa fomos à caça. Caça de ortópteros onívoros, de corpo achatado e oval, que põe ovos em ootecas, e tem hábitos noturnos: Baratas.
Nosso grupo de deliquentes mirins conseguiu em menos de meia-hora encher as caixas com aqueles insetos tão nojentos e temidos.
Partimos logo para ação principal. Infiltramos-nos entre a moçada do footing e numa parte menos iluminada da rua – em frente à Alfaiataria Alfano – abrimos nossas caixas de Pandora libertando nossas prisioneiras.
Foi um gritedo, mulheres, meninas, moças, e muitos marmanjos também, fugiram em pânico gritando pela rua afora.
Quando a situação se acalmou a Bento Martins era um caos. Mulheres chorando, mesas e cadeiras viradas (naquele tempo era costume sentar-se na frente das casas para ver o movimento), e valentões matando as voadoras a patadas.
E nós? Bem, nós já havíamos sumido há muito tempo. O ataque foi tão bem executado que nunca fomos descobertos. A ETA - Euskadi Ta Askatasuna - não teria feito melhor.

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